Blog HISTÓRIA
DO ENSINO SUPERIOR MUNDIAL, de autoria de Álaze Gabriel.
Autoria:
Antonio
Sérgio Alfredo Guimarães. Departamento de Sociologia da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
RESUMO
Neste artigo, restringirei a análise do movimento
por ações afirmativas ao sistema de educação superior do país, setor mais
visado pelas demandas dos militantes e, por isso mesmo, responsável pelo
caráter de classe média dessas ações. Como veremos, tais demandas encontraram
respostas quase que imediatas do sistema político brasileiro, tanto por parte
do governo quanto por parte dos políticos, ainda que continuem despertando
fortes resistências da sociedade civil. Meu propósito é compreender os motivos
de reações tão díspares. Antes, porém, farei uma rápida apresentação dos
problemas educacionais do país e também das medidas que vêm sendo adotadas pelo
governo e pelo sistema político, em geral, para enfrentá-los.
INTRODUÇÃO
Em 1978, quando diversas organizações políticas e
culturais negras se reuniram, em São Paulo, para fundar o Movimento Negro
Unificado Contra a Discriminação Racial, as suas bandeiras de luta já não eram
as mesmas herdadas da tradição das organizações negras paulistas, que remontam
aos anos 20. Naqueles tempos, as organizações negras nutriam o diagnóstico
segundo o qual, mesmo que o "preconceito de cor" fosse um empecilho
para o desenvolvimento e a integração social do povo negro brasileiro, o principal
problema estava nos próprios negros, principalmente na carência de condições
para competir no mercado de trabalho, em vista da precariedade de educação
formal, ausência de boas maneiras e falta de união entre eles, ou seja, dada a
fraqueza das organizações negras, tidas como incapazes de promover o avanço
social dos membros da "raça"1.
Com a democracia de 1945, esse diagnóstico foi
parcialmente abandonado pelas novas organizações negras, que passaram a dar
mais ênfase à existência do preconceito de cor no Brasil, ainda que mantivessem
o foco de seus esforços em atividades culturais, educativas e psicanalíticas
(como as desenvolvidas pelo Teatro Experimental do Negro, no Rio de Janeiro).
De qualquer modo, embora passassem a combater com mais afinco o
"preconceito", acreditava-se ainda que o ideal de democracia racial,
característico do país, era uma ideologia suficientemente forte e progressista
para abrigar e proteger a mobilização política e cultural dos negros. Apenas
depois de rompida a ordem democrática, em 1964, tal crença foi considerada uma
"ilusão" e a democracia racial, um "mito" (Guimarães, no
prelo).
Pois bem, nos anos 70, já não era o
"preconceito racial", mas a "discriminação racial" o
principal alvo da mobilização negra. Essa foi uma diferença crucial em relação
às décadas passadas: a pobreza negra passou a ser tributada às desigualdades de
tratamento e de oportunidades de cunho "racial" (e não apenas de
cor). E os responsáveis por tal estado já não eram os próprios negros e sua
falta de união, mas o establishment branco, governo e sociedade civil;
numa palavra, o racismo difuso na sociedade brasileira. Ou seja, a posição da
massa negra e a sua pobreza, tanto quanto a condição de inferioridade salarial
e de poder dos negros mais educados, seriam fruto desse racismo que se escondia
atrás do "mito da democracia racial".
A partir de 1988, ano do centenário da abolição da
escravatura e da promulgação da nova Constituição, as lideranças negras
começaram a desenvolver um intenso trabalho na área de defesa dos direitos
civis dos negros, principalmente aqueles garantidos pela nova carta, que tornou
os "preconceitos de raça ou de cor" crime inafiançável e
imprescritível2.
No entanto, passados poucos anos, já se fazia claro para esses militantes que a
luta por direitos necessitava transpor os limites do combate aos "crimes
de racismo". Paulatinamente, portanto, voltaram-se essas organizações para
o governo federal a demandar "ações afirmativas", tais como o governo
norte-americano adotara nos anos 60 e o governo sul-africano, de Nelson
Mandela, passara a discutir. Essa demanda representou uma importante guinada na
pauta de reivindicação dos negros brasileiros, dando início a uma era de luta
contra as desigualdades sociais do país, vistas agora como "raciais",
independentemente do combate à discriminação e ao preconceito. Junto com o Movimento
dos Sem Terra, ainda que de modo menos dramático, menos conflituoso, e de
escopo social menor, quase que restrito às "novas classes médias
negras"3,
o movimento dos negros brasileiros contra as desigualdades raciais é sem dúvida
uma importante forma de mobilização social no Brasil de hoje. Mobilização essa
que se torna mais importante à medida que os conflitos urbanos de classe (como
os protagonizados pelos sindicatos operários) tenderam a se eclipsar na esteira
das reformas "neoliberais" e do realinhamento internacional da
economia brasileira.
Neste artigo, vou restringir a análise desse
movimento por ações afirmativas ao sistema de educação superior do país,
justamente o setor mais visado pelas demandas dos militantes e, por isto mesmo,
responsável pelo caráter de "classe média", de que falei. Como
veremos, essas demandas encontraram respostas quase que imediatas do sistema
político brasileiro, tanto por parte do governo quanto por parte dos políticos,
ainda que continuem encontrando fortes resistências da sociedade civil. Meu
objetivo é compreender as razões de reações tão díspares.
Antes, porém, faz-se necessária uma rápida
apresentação tanto dos problemas educacionais do país quanto das medidas que
vêm sendo adotadas pelo governo e pelo sistema político em geral para
contorná-los ou solucioná-los.
A CRISE EDUCACIONAL BRASILEIRA
O fato mais marcante na política educacional
brasileira depois de 1964, ou seja, depois da derrota das forças nacionalistas
que entretinham um projeto socialista para o país4,
foi a estagnação da rede de ensino público universitário, conjuntamente com a
expansão do ensino privado em todos os níveis de educação – o elementar, o
médio e o superior5.
Esse relativo abandono da educação por parte do Estado brasileiro é
parcialmente responsável pelo fato de que apenas 7,8% da população brasileira
de 18 a 24 anos estivesse nas universidades em 1998 (IBGE/PNAD apud Sampaio,
Limongi, Torres, 2000)6.
Deve-se salientar, entretanto, que a solução dada
pelos governos militares ao "problema educacional" do país não foi
alterada pelos quatro governos democráticos depois de 1985 (as administrações
Sarney, Collor, Itamar e Fernando Henrique). A linha mestra continuou sendo a
expansão do sistema superior de educação privada e a estagnação da rede
pública. A rede privada de ensino superior, que já congregava 59% dos alunos,
em 1985, passou a concentrar 62%, em 1998 (Brasil, 1999). Na verdade, o ensino
público superior se expandiu apenas mediante a criação de universidades
estaduais ou municipais, mas em número insuficiente para contrabalançar a
retirada de investimentos na expansão da rede pública federal. De fato, a
presença do governo federal na educação superior, medida em termos de alunado,
caiu de 40%, em 1985, para 19%, em 1998 (Brasil, 1999).
Ora, se o problema da escassez de vagas
universitárias foi parcialmente compensado pela rede privada, formou-se, com o
tempo, um novo problema, pois, a expansão do ensino privado elementar e médio
deu-se pari passu ao crescimento da "qualidade" do serviço
ofertado, o mesmo não acontecendo com o nível superior, no qual a iniciativa
privada demonstrou-se incapaz de ofertar um ensino equivalente, em termos de
"qualidade", à rede pública já estabelecida7.
Isso por vários motivos, o principal deles é o alto custo da formação acadêmica
e da pesquisa científica, que exigem grandes investimentos em recursos humanos
e treinamento. No ensino elementar e médio, ao contrário, a iniciativa privada
foi capaz não apenas de atrair os melhores professores, como alguns dos
melhores professores tornaram-se eles mesmos, com o tempo, grandes empresários.
O resultado desses dois movimentos em direção
oposta foi que a rede pública e gratuita de ensino médio e elementar
expandiu-se com baixa "qualidade" ou mesmo, no mais das vezes, com
certa precariedade. Ora, o motivo para a melhoria do ensino fundamental e médio
oferecido pela rede privada foi justamente a relativa estagnação do ensino
superior na rede pública. Isso porque, motivadas pelo afunilamento da oferta de
ensino superior de "qualidade", assegurado pelo mecanismo do vestibular,
as famílias de classe média e alta demandaram em proporção crescente a rede
privada de ensino elementar e médio, permitindo não apenas a sua expansão
física, mas a melhoria da oferta dos seus serviços, reforçada ainda mais pela
concorrência entre as escolas particulares. Quanto mais se acentuava a
concorrência, entretanto, mais difícil ficava para os filhos das classes
médias, situados na sua franja mais pobre, cursarem os melhores colégios e
atingirem a universidade pública.
Em meados dos anos de 1970, algumas parcelas da
sociedade brasileira, principalmente a classe média negra, já sentiam os
efeitos dessa política. Como disse Santos (1985), os jovens negros, para
titularem-se, tinham de recorrer à rede particular de ensino superior, obtendo
diplomas desvalorizados no mercado de trabalho, que acentuavam ainda mais a
discriminação racial de que eram vítimas. Foram justamente os negros os
primeiros a denunciarem, como discriminação, o relativo fechamento das
universidades públicas brasileiras aos filhos das famílias mais pobres, que, na
concorrência pela melhor formação em escolas de 1o e 2o
graus, eram vencidas pelas classes média e alta. As provas de exame vestibular
para o ingresso nas universidades públicas passaram a ser realizadas, portanto,
num contexto de grande desigualdade de formação, motivada principalmente pela
renda familiar. Jovens de classe média e alta, que podiam cursar as melhores e
mais caras escolas elementares e de 2o grau, praticamente
abocanhavam todas as vagas disponíveis nos cursos das universidades públicas e
gratuitas. A perversão do sistema tornava-se clara.
O que há de novo, portanto, é que, ao contrário dos
anos de 1960, não foram as classes médias "brancas", mobilizadas em
torno de ideais socialistas e empenhadas numa política de alianças de classes,
pretendendo-se, no mais das vezes, os porta-vozes de camponeses e operários,
que tomaram a cena política. Quem empunhou a nova bandeira de luta por acesso
às universidades públicas foram os jovens que se definiam como
"negros" e se pretendiam porta-vozes da massa pobre, preta e mestiça,
de descendentes dos escravos africanos, trazidos para o país durante mais de
trezentos anos de escravidão. Essa juventude estudantil negra começa a realizar
assim o ideal de luta socialista, verbalizado por Florestan Fernandes (1972),
no final dos anos de 1960: o negro seria o mais oprimido e explorado de todos,
e a sua luta a mais radical das lutas de emancipação.
A DEMANDA E AS RESISTÊNCIAS ÀS AÇÕES AFIRMATIVAS
A partir de 1996, o presidente Fernando Henrique
Cardoso passou a dar mais espaço para que a demanda por ações afirmativas,
formulada pelos setores mais organizados do movimento negro brasileiro, se
expressasse no governo 8.
A razão para tal abertura deveu-se não apenas à sensibilidade sociológica do
presidente, ou à relativa força social do movimento, mas também à difícil
posição em que a doutrina da "democracia racial" encurralava a
chancelaria brasileira em fóruns internacionais, cada vez mais freqüentados por
ONGs negras. O país, que se vangloriava de não ter uma questão racial, era
reiteradamente lembrado das suas "desigualdades raciais", facilmente
demonstráveis pelas estatísticas oficiais, sem poder apresentar, em sua defesa,
um histórico de políticas de combate a essas desigualdades. Era em busca de uma
saída política que o presidente queria trazer o debate sobre ações afirmativas
para perto do governo.
De fato, o diagnóstico técnico sobre o caráter
racial das desigualdades sociais brasileiras já era internacionalmente
conhecido desde os anos de 1980 (Silva, 1978; Hasenbalg, 1979). A crise
educacional brasileira, inclusive o acesso restrito de negros ao ensino
superior, a má qualidade da escola fundamental pública e a grande desigualdade
racial em todos os níveis de ensino já eram amplamente discutidas nos meios
intelectuais e políticos quando o governo social-democrata de Fernando Henrique
tomara posse em 1995. Em um importante artigo, publicado em 1990, em que
analisam dados da PNAD de 1982, Hasenbalg e Silva, por exemplo, chamavam a
atenção para o fato de que:
As informações da PNAD de 1982 indicaram que, no
que diz respeito ao acesso ao sistema escolar, uma proporção mais elevada de
crianças nãobrancas ingressa tardiamente na escola. Além disso, a proporção de
pretos e pardos que não têm acesso de todo à escola é três vezes maior que a
dos brancos. Estas desigualdades não podem ser explicadas nem por fatores
regionais, nem pelas circunstâncias sócioeconômicas das famílias. Embora uma
melhor situação sócioeconômica reduza a proporção de crianças que não têm
acesso à escola independentemente de sua cor, ainda persiste uma diferença clara
nos níveis gerais de acesso entre crianças brancas e nãobrancas mesmo nos
níveis mais elevados de renda familiar per capita. (1990, p.99)
Na verdade, durante todos os anos 80 e na primeira
metade dos 90 que antecederam a posse de Cardoso, as mobilizações em torno do
centenário da Abolição da Escravatura e dos 300 anos de Zumbi9
possibilitaram que o diagnóstico sobre as desigualdades raciais brasileiras,
assim como o racismo à brasileira, fosse amplamente discutido na imprensa
(Guimarães, 1998). Especialmente porque, a partir da regulamentação das
disposições transitórias da Constituição de 1988, que tornou crime a prática de
preconceitos de raça, passou a haver uma grande movimentação das ONGs negras em
torno da denúncia e da perseguição legal contra atos de discriminação. Foi
justamente o esgotamento da estratégia de combater as desigualdades punindo a
discriminação racial que levou as entidades negras a demandarem políticas de
ação afirmativa10.
Nos primeiros tempos, de 1995 até bem recentemente,
a reação da sociedade civil, representada pelos seus principais intelectuais e
meios de comunicação de massa, foi largamente contrária à adoção de políticas
de cunho racialista. O movimento negro, assim como os poucos intelectuais
brancos que defendiam tais políticas, viram-se politicamente isolados, por mais
de uma vez, sob a acusação de vocalizar e deixar-se colonizar culturalmente
pelos valores norte-americanos. De fato, nada mais contrário à identidade
nacional brasileira, tal como foi formada historicamente – como identidade
anticolonial, culturalmente híbrida e racialmente mestiça –, que o
reconhecimento étnico-racial dos negros. Assim, os que porventura tinham
sólidos interesses na manutenção das desigualdades encontraram aliados cujos
motivos eram puramente ideológicos, pessoas que viam nas políticas dirigidas
preferencialmente aos negros a penetração no Brasil do
"multiculturalismo" e do "multirracialismo" de extração
anglo-saxônica.
Não foi surpresa, portanto, que alguns setores do
governo, mesmo diante do diagnóstico de que as barreiras educacionais que
atingem os negros são o principal entrave à igualdade racial no país (Silva,
2001), tivessem resistido duramente, durante toda a administração Cardoso, à
adoção de medidas racialistas. O Ministério da Educação, sobretudo, recusou-se
a aceitar o caráter "racial" das desigualdades educacionais,
preferindo atribuí-las ao mau funcionamento do ensino fundamental público e a
questões de renda e classe social. Para o ministro Souza (2001), o problema de
acesso do negro às universidades só poderia ser resolvido pela universalização
do ensino de nível fundamental e médio e da melhoria da suas condições de
funcionamento, ou seja, por meio da política implementada durante sua gestão
(1995-2002) e cujos frutos seriam colhidos pelas próximas gerações.
Portanto, até 2001, quando se realiza a Conferência
de Durban (África do Sul), o grosso da ação governamental restringiu-se ao
combate à pobreza, mediante programas color-blind, como os programas Alvorada,
Avança Brasil e Comunidade Solidária. Até então, apenas alguns
programas específicos do governo federal levavam explicitamente em consideração
a identidade racial dos participantes. Esses programas eram conduzidos por
ministérios em que quadros negros do partido do governo tinham alguma
ascendência: Justiça (Programa Nacional de Direitos Humanos), Trabalho (o
projeto "Brasil: Raça e Gênero" e o Programa de Formação Profissional
– Planfor) e Cultura (Titulação de Terras de Remanescentes de Quilombos).
Em relação à pobreza, a ação governamental foi
relativamente bem-sucedida, mesmo porque tal redução pode ser atribuída, em
grande parte, à estabilização econômica, lograda com o Plano Real. Segundo os
números do governo brasileiro (Brasil, 2000), de 1990 a 1997, reduziu-se em 10
pontos percentuais o número de brasileiros abaixo da linha da pobreza (de 44%
para 34% da população).
Mas, se a estabilidade diminuiu a pobreza absoluta,
as desigualdades sociais, principalmente as raciais, não parecem ter diminuído.
É o que dizem Barros, Henriques e Mendonça:
...o maior declínio no grau de desigualdade, apesar
de pouco relevante, encontra-se na entrada da década, entre os anos de 1989 e
1992. Em particular, no que se refere ao Plano Real, não dispomos de evidência
alguma de que tenha produzido qualquer impacto significativo sobre a redução no
grau de desigualdade, apesar de a pobreza ter sofrido uma redução importante
...(2001, p.38)
Ademais, se é inegável que a administração Cardoso
conseguiu vitórias expressivas no terreno social11,
a diminuição da pobreza não pode ser considerada como um ganho irreversível,
mas, ao contrário, uma oscilação cuja manutenção dependerá do crescimento
econômico futuro. Pelo menos é isso que sugerem os dados:
Ao longo das últimas duas décadas, a intensidade da
pobreza manteve um comportamento de relativa estabilidade, com apenas duas
pequenas contrações, concentradas nos momentos de implementação dos Planos
Cruzado e Real. Esse comportamento estável, com a percentagem de pobres
oscilando entre 40% e 45% da população, apresenta flutuações associadas,
sobretudo, à instável dinâmica macroeconômica do período. O grau de pobreza
atingiu seus valores máximos durante a recessão do início dos anos 80, quando a
percentagem de pobres em 1983 e 1984 ultrapassou a barreira dos 50%. As maiores
quedas resultaram, como dissemos, dos impactos dos Planos Cruzado e Real,
fazendo a percentagem de pobres cair abaixo dos 30% e 35%, respectivamente.
(Barros, Henriques, Mendonça, 2001 p.23)
Para um país que gastava, em 2000, cerca de 20% do
PIB em programas sociais, e que tinha uma renda per capita anual em
torno de US$ 2,9 mil, a persistência de altos níveis de pobreza só pode estar
"vinculada a uma distribuição de renda extremamente desigual e à baixa
eficácia do gasto público" (Brasil, 2000).
A resistência da sociedade civil brasileira a
políticas públicas raciais, entretanto, foi parcialmente quebrada pela
repercussão favorável, na opinião pública internacional, às posições do Brasil
na Conferência Mundial Contra a Discriminação Racial, em 2001. De fato, em
Durban, o empenho pessoal do presidente levou a chancelaria brasileira a
aposentar definitivamente a doutrina da "democracia racial",
reconhecendo, em fórum internacional, as desigualdades raciais do país e se
comprometendo a revertê-las pela adoção de políticas afirmativas.
Como conseqüência, depois de Durban, vários
segmentos da administração pública brasileira passaram a adotar cotas de
emprego para negros, tais como os ministérios da Justiça e da Reforma Agrária.
No entanto, no setor crucial, a educação, tudo que se logrou foi a criação de
uma comissão de trabalho, como veremos adiante.
PEQUENA ABSORÇÃO DE JOVENS "NEGROS" NAS
UNIVERSIDADES
O problema de acesso do negro brasileiro às
universidades é também um problema de sua ausência nas estatísticas
universitárias. Até dois anos atrás (2000), não havia em nenhuma universidade
pública brasileira registro sobre a identidade racial ou de cor de seus alunos.
Só quando a demanda por ações afirmativas para a educação superior fez-se
sentir é que surgiram as primeiras iniciativas, na forma de censos e de
pesquisas por amostra, para sanar tal deficiência12.
Nesse item vou valer-me dos dados produzidos pelas primeiras iniciativas nesse
sentido, tomadas pela Universidade de São Paulo e pelo Programa "A Cor da
Bahia", da Universidade Federal da Bahia.
Os dados mostram que a proporção de jovens que se
definem como "pardos" e "pretos" nas universidades
brasileiras, principalmente naquelas que são públicas e gratuitas, está muito
abaixo da proporção desses grupos de cor na população.
Vejamos alguns dados: na Universidade de São Paulo
– USP –, em 2001, havia 8,3% de "negros" (ou seja, 7% de
"pardos" e 1,3% de "pretos") para uma população de 20,9% de
pardos e 4,4% de "pretos" no Estado de São Paulo. A USP, com 34 mil
estudantes na graduação, é praticamente a única universidade pública na Grande
São Paulo13,
(região em que habitam 17 milhões de pessoas.)
A tabela 1 mostra que a mesma desigualdade
de acesso é registrada em outras universidades públicas do país, como a do Rio
de Janeiro – UFRJ –, do Paraná –UFPR –, da Bahia –UFBA –, do Maranhão – UFMA –,
e de Brasília – UnB.
A análise dos dados da Fundação para o Vestibular –
Fuvest –, órgão que administra o vestibular da USP, referentes aos resultados
do vestibular 2000, permite verificar alguns dos fatores que explicam a pequena
absorção de "negros" nas universidades brasileiras. Em primeiro
lugar, como era de se esperar, nota-se uma grande seletividade segundo as
classes socioeconômicas das famílias dos candidatos.
A tabela 2 mostra, por exemplo, que a
classe socioeconômica interfere no desempenho dos membros de todos os grupos de
cor: quanto maior a classe socioeconômica do candidato, melhor o seu
desempenho, maiores as chances de acesso. A influência da classe também se
manifesta por três outras variáveis. Primeiro, a possibilidade de dedicação
exclusiva aos estudos: aqueles que não precisam trabalhar têm um desempenho
melhor no vestibular. Segundo, e relacionado a esse, o turno em que cursou a
escola secundária: aqueles que estudaram no período diurno têm mais sucesso.
Terceiro, a natureza do estabelecimento de 1º. e 2º. graus em que se estudou:
aqueles que cursaram escolas públicas estaduais e municipais têm menos
possibilidade de sucesso (Guimarães et al., 2002).
Evidentemente, esses dados apontam para problemas
estruturais da sociedade brasileira, que precisam ser enfrentados, entre os
quais se destacam a pobreza dos "negros" e a baixa qualidade da
escola pública.
No entanto, os dados apontam também para dois
outros fatores que é preciso destacar. Em primeiro lugar, o candidato
"negro" ("pardo" ou "preto"), quando comparado ao
candidato que se identifica como "amarelo", demonstra que lhe falta
apoio familiar e comunitário. Assim, o maior sucesso dos "amarelos",
também uma minoria de cor, explica-se, em parte, no caso da USP, pelo maior
número de vezes que eles tentam o vestibular, pelo maior tempo de preparação
para o vestibular, medido por anos de cursinho, e pelo fato de se inscreverem
em maior número como "treineiros". Ao contrário, são os
"negros" os que estão em pior situação nesses três indicadores. Uma
conclusão preliminar que se impõe, portanto, é a de que, além de problemas de
ordem socioeconômica, os "negros" enfrentam também problemas
relacionados com preparação insuficiente e pouca persistência ou motivação.
Problemas desse tipo acompanham todas as minorias que vivenciaram posição
social subalterna por um longo período de tempo, seja porque os laços
comunitários são ainda fracos, seja porque o grupo não desenvolveu uma estratégia
eficiente de reversão de sua posição de subordinação.
Com essa observação chegamos ao segundo fator que
gostaria de destacar: a evidência inconteste de elementos de racismo
introjetado. Ou seja, o desempenho inferior dos grupos "pardo" e
"preto" em todas as classes socioeconômicas (exceto os
"pardos" de classe A) sugere que há também um elemento subjetivo,
talvez um sentimento de baixa autoconfiança, que interfere no desempenho dos
"negros" em situação de grande competição, tal como ocorre também com
outros grupos oprimidos. O fato de que situações de grande competição, como o
vestibular, não medem adequadamente as qualidades e os saberes dos estudantes
"negros" fica comprovado quando comparamos o rendimento escolar e a
pontuação no vestibular por grupos de cor. Mascarenhas (2001), em estudo sobre
os estudantes da Universidade Federal da Bahia, achou, por exemplo, que os
alunos "pretos" do curso de Medicina ingressaram com escore inferior
aos "brancos"(5,32 contra 5,48), mas durante o curso apresentavam
rendimento superior a estes (7,49 contra 7,31). Ou seja, tudo leva a crer que o
exame vestibular, dado o seu caráter de competição extremada e tensa, prejudica
mais o desempenho de membros de minorias.
Com essa última observação, quero sugerir também
que há problemas com a forma de seleção para as universidades: o exame
vestibular não deixa espaço para que outras qualidades e potencialidades dos
alunos sejam avaliadas.
Sintetizando, as causas da pequena absorção dos
"negros" têm a ver com: (a. pobreza; (b. qualidade da escola pública;
(c. preparação insuficiente; (d. pouca persistência (pouco apoio familiar e
comunitário); (e. com a forma de seleção (o exame vestibular não dá
oportunidade para que outras qualidades e potencialidades dos alunos sejam avaliadas).
A LUTA POR AÇÕES AFIRMATIVAS
A primeira tentativa das organizações negras de
fazer face à obstrução do acesso dos negros à universidade brasileira deu-se na
forma de criação de cursos de preparação para o vestibular. Organizados
geralmente a partir do trabalho voluntário de militantes e simpatizantes, que
se dispunham a ensinar gratuitamente, ou a um preço puramente simbólico, a
jovens negros da periferia do Rio de Janeiro, São Paulo e de outras grandes
cidades brasileiras, esses cursos funcionavam, e ainda funcionam, em espaços
físicos cedidos por entidades religiosas ou associações comunitárias. Estima-se
hoje em mais de 800 o número desses núcleos espalhados por todo o país. Os mais
famosos e maiores desses cursos são o Pré-Vestibular para Negros e Carentes, no
Rio de Janeiro, e o Educafro, em São Paulo, ambos ligados à Pastoral Negra da
Igreja Católica e liderados pelo Frei David (Araújo, 2001; Maggie, 2001)14
.
Trata-se de um verdadeiro movimento social,
organizado nos últimos anos por diversas lideranças "negras" e
religiosas. O sucesso dessa estratégia, no entanto, é apenas relativo. Se é
verdade que tais cursinhos têm conseguido ajudar milhares de jovens a ingressar
no ensino superior, é também verdade que o seu sucesso é bem maior nas escolas
particulares que nas públicas, o que coloca de cara o problema de custeio do
curso universitário. O Ministério da Educação não tem colocado bolsas de
estudos à disposição desses alunos. Mais importante ainda: as melhores escolas
superiores do país, as universidades federais e estaduais paulistas, têm-se
mantido praticamente inexpugnáveis a essa estratégia. De modo geral, a
defasagem entre alunos "negros" e "brancos" é tão grande,
acumulada ao longo da escola primária e secundária, fortalecida pela ausência
de políticas públicas que compensem a desigualdade de distribuição de renda e
de outros recursos, que a estratégia de fazer cursos pré-vestibulares para
negros e carentes, apesar de valorosa e importante para soerguer a auto-estima
desses alunos, cujo grande capital é a esperança, só pode ter resultados
concretos muito parciais em termos de acesso à universidade. Em sua página na
internet, por exemplo, o Educafro, de São Paulo, torna pública a sua crítica às
universidades públicas:
Em São Paulo, chegamos ao mês de abril/2001 com 87
bolsistas na Universidade São Francisco de Assis; 26 bolsistas na PUC-SP; 65
bolsistas na Unisa e 25 bolsistas na Esan; 2 bolsistas na FEI; 16 bolsistas na
Faculdade São Luiz; 29 bolsistas na UMC; 22 bolsistas na São Camilo; 144
bolsistas na Faculdades Claretianas; 105 bolsistas na Unisal; 6 bolsistas na
Unisantos e 7 bolsistas na Unisanta. No total, até abril de 2001, tínhamos
534 universitários bolsistas!!! Na pública USP, temos 46 alunos entre os
matriculados e os que estão cursando como alunos especiais. O fato de o
vestibular da USP ser o mais elitista do Brasil, inclusive não permitindo que
os pobres tenham isenção da taxa do vestibular, tem dificultado o ingresso dos
nossos alunos nesta universidade (a Educafro teve que abrir 49 processos contra
a USP, para conquistar a isenção). A USP, como universidade pública, deveria
estar voltada para os alunos da rede pública. É fundamental ampliarmos o
combate a esta injusta postura. É falta de visão social ou de coragem do
comando da USP não criar políticas públicas voltadas para o combate das
estruturas que, nestes 501 anos geraram a ausência dos pobres e dos afrodescendentes
nos bancos universitários15.
Uma outra via, no entanto, tem sido tentada
ultimamente, e já está implementada em alguns estados brasileiros, como o Rio
de Janeiro e a Bahia, de maioria populacional negra: a definição de cotas nas
universidades estaduais. Assim, em 9 de novembro de 2001, o governador
Garotinho, do Rio de Janeiro, sancionou a Lei n. 3.708, que reserva um mínimo
de 40% de vagas nas universidades estaduais cariocas (a Universidade do Estado
do Rio de Janeiro e a Universidade Estadual do Norte Fluminense) a estudantes
"negros e pardos". Essa Lei modificou a de n. 3.524/2000, assinada
pelo mesmo Garotinho, que reservou 50% das vagas da Uerj e Uenf aos estudantes
oriundos de escolas públicas. Em 20 de julho de 2002, a Universidade do Estado
da Bahia – Uneb –, pela resolução n. 196/2002, segue o mesmo caminho,
reservando 40% das suas vagas de vestibular aos afrodescendentes (pretos e
pardos).
Ainda que a importância simbólica das medidas
adotadas pelos governos do Rio e da Bahia seja inegável, tem-se que esperar um
pouco mais para avaliar o resultado concreto das políticas adotadas em termos
de ampliação do acesso dos negros. Mesmo porque não sabemos qual o número atual
de "negros" já matriculados nessas universidades, sendo bem possível
que este já esteja dentro das cotas anunciadas. É preciso também saber se as
cotas serão adotadas para cada curso ou se serão aplicadas ao seu conjunto. Só
no primeiro caso há chance de abrirem-se aos negros os cursos "de
elite" da universidade brasileira, tais como os de Medicina, Engenharia, Direito
etc.
Alguma mobilização para que as universidades
federais adotem programas de ação afirmativa começa a se fazer notar também na
Universidade de Brasília, na Universidade Federal da Bahia, na Universidade
Federal do Paraná e na Universidade Federal de São Carlos. No entanto, nada de
concreto, até o momento, resultou dessas mobilizações, exceto, talvez, o fato
de que o Ministério da Educação, que se opusera tenazmente à adoção de cotas ou
políticas de ação afirmativa, restringindo a sua atuação à melhoria do ensino
básico e de 2º. grau, acabou, recentemente, se rendendo às pressões da
comunidade negra16
e, pela medida provisória n. 63, de 26 de agosto de 2002, assinada pelo
Presidente da República, criou o Programa Diversidade na Universidade,
"com a finalidade de implementar e avaliar estratégias para a promoção do
acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos,
especialmente dos afrodescendentes e dos indígenas brasileiros".
Essa mobilização já tinha encontrado eco
anteriormente no Senado, onde a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania
aprovara o Projeto de Lei do Senado n. 650, em 1999, ainda não votado em
plenário, que institui a cota de 20% das vagas das universidades federais para
estudantes negros. No entanto, o estabelecimento de cotas uniformes para
"negros" nas universidades públicas, tal como proposto por este e
outros projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional, não parece ser uma
boa alternativa. Isso porque são ignoradas as disparidades regionais em termos
demográficos, assim como as especificidades de cada universidade17.
No que toca aos universitários brasileiros, é
preciso reconhecer que há, de fato, interesses contraditórios em jogo entre o
movimento negro, por um lado, e professores e alunos já matriculados, por
outro. Uns, os estudantes que tiveram uma boa educação escolar e que podem
entrar nas universidades públicas pelo vestibular, temem que políticas de
acesso especial para negros diminuam as suas chances, uma vez que o número de
vagas não se expande na mesma razão da expansão da demanda; outros, os
professores, temem que a política educacional do governo tome a via mais fácil,
cedendo às reivindicações negras, mas mantendo razoavelmente estável o
investimento na educação superior pública, o que, na prática, significaria o
comprometimento do nível de "qualidade" dos cursos universitários da
rede pública. Ora, como vimos, parte da garantia dessa qualidade é justamente a
relativa estagnação no tempo da oferta de vagas.
POR QUE AÇÕES AFIRMATIVAS?
Para finalizar, gostaria de discutir algumas
reações da sociedade civil brasileira às demandas e às políticas de ação
afirmativas já adotadas pelo governo. Para fazer isso, temos que distinguir
entre dois tipos de interesses em jogo. Primeiro, aqueles interesses diretos e
materiais, o que os americanos chamam de vested interests; segundo, os
interesses morais ou culturais.
Já falamos brevemente sobre os interesses diretos,
que contrapõem, de um lado, boa parte da classe média negra (para ser mais
preciso: aquelas famílias negras que têm formalmente possibilidade de ingressar
na universidade, mas não têm nem capital financeiro nem cultural para tanto) e,
do outro lado, as famílias de classe média, em grande maioria, mas não
inteiramente, brancas, que encontram no vestibular um meio adequado de ingresso
no ensino superior. Aliados a essas últimas estão os professores
universitários, interessados em resguardar a sua própria posição social, que
depende grandemente da boa qualidade do ensino superior público.
Um dos argumentos mais usados, principalmente por
professores das universidades públicas, contra as políticas de ação afirmativa
para negros é de que a flexibilização do sistema de ingresso poderia acarretar
uma perda de qualidade do ensino e de excelência das universidades. A isso, os
ativistas negros respondem apontando para o caráter preconceituoso desta
opinião, uma vez que não se mostram os dados em que ela pode estar baseada. Por
exemplo, com que notas se ingressa, normalmente, nas universidades brasileiras?
Essas notas variam de curso para curso? Há uma nota mínima de aprovação? Ou
seja, se a competência para cursar o nível superior deve ser uma preocupação
das universidades, deve haver também um ponto de corte (expresso numa nota) que
corresponda à habilitação necessária para cursar a universidade. Qual a
situação dos "negros" que prestam exame de vestibular? Eles estão ou
não habilitados, ou seja, obtêm ou não a nota mínima, digamos 5, numa escala de
0 a 10?
Na verdade, o argumento dos professores reflete
muito mais, como vimos, a falta de confiança no governo por parte da comunidade
universitária. A política do Ministério da Educação em relação às universidades
gerou a desconfiança de que o governo tenha a intenção de desmanchar ou, pelo
menos, diminuir a importância do sistema público de ensino superior do país,
construído nos anos 30, 40 e 50.
O segundo tipo de interesses em jogo, como
dissemos, é de ordem cultural e moral, e não acredito que possamos reduzi-los a
vested interests. Parte dos intelectuais brasileiros teme a adoção
oficial de qualquer política racial, ainda que na forma virtuosa de correção de
desigualdades passadas, acreditando que, de certo modo, as categorias raciais
utilizadas sedimentem o problema que pretendem resolver. Aparentemente, para esses
intelectuais, as desigualdades de classe, ou seja, aquelas que se constituem
sem qualquer reforço legal por parte do Estado, mas pelo jogo difuso das
discriminações e estereotipias, parecem ser as únicas aceitáveis. Por isso,
mesmo, um dos primeiros argumentos desses intelectuais é a relativa benignidade
da situação racial brasileira, a sua particularidade e a "democracia
racial" que vige entre nós, ainda que na forma de "mito". Entre
nós, alegam, não há apenas brancos e negros.
Assim, no Brasil, haveria um impedimento de ordem
prática contra a adoção de políticas que levem em conta a identidade racial dos
indivíduos: não haveria fronteiras raciais bem definidas no país. O argumento,
me parece, é melhor como efeito discursivo, desarmando os adversários pelo
apelo ao senso comum e às representações consensuais de si mesmo, que como
apelo substantivo ou racional.
Vejamos os dados disponíveis para a Usp, por
exemplo: quando fizemos a pergunta "Usando as categorias do censo do IBGE,
qual a sua cor?", oferecendo como respostas possíveis as cinco
alternativas censitárias (branco, preto, pardo, amarelo e indígena), dos 14.794
alunos de graduação que responderam ao censo, apenas 0,1% recusou-se a
responder ou escolheu mais de uma opção. Quando selecionamos uma amostra
aleatória, independente do censo, composta por 1.509 alunos, o percentual de
não-resposta se elevou para 1,7%. Ou seja: está claro que a população
brasileira, em particular a universitária, cultiva identidade de cor. Serão
essas identidades tão fluidas a ponto de impedir "políticas de cor"?
Creio que não. Mesmo os autores que ressaltam a "ambigüidade" do
sistema de classificação racial brasileiro, como Peter Fry (1995), reconhecem
que este se assenta sobre uma polaridade básica entre branco e preto. Historicamente,
é para esses pólos que convergem as reivindicações políticas.
Neste ponto, talvez convenha fazer um parêntese
para lembrar o que é o sistema de classificação racial brasileiro em suas
linhas mestras. "Raça", no século XIX, no Brasil e no resto do mundo,
ganhou uma conotação científica, biológica, da qual mesmo hoje temos
dificuldade de nos desembaraçarmos. Na percepção da maior parte dos
estrangeiros que visitam hoje o país, assim como na percepção dos viajantes do
século XIX, a população do Brasil é composta em sua maior parte por mestiços,
que não encontram grandes dificuldades e barreiras para sua ascensão social18.
Tal percepção só é verossímil, entretanto, se trabalharmos com a categoria
biológica de raça, própria ao século XIX, ainda que seja um fato
inquestionável, que a idéia de que somos uma nação mestiça é uma ideologia
ainda hoje presente no Brasil. Paradoxalmente, entretanto, isso não impede que
os nacionais percebam a existência do racismo19.
No século XX, a partir da segunda metade dos anos de
1920, para ser mais preciso, a idéia de "raça", no Brasil, passou a
ser utilizada com um significado mais propriamente histórico e cultural, à
maneira como W.E. Du Bois (1986) a utilizava, e como passou a ser também
utilizada no mundo francófono pelos poetas e políticos da négritude. A
partir dessa idéia mais histórica e cultural de raça, os "homens de
cor" no Brasil passaram a se definir como "negros" e a aceitar
que os mestiços claros que se definiam como "brancos" fossem
realmente brancos. Ou seja, o Brasil moderno, cujo marco é geralmente a
Revolução de 1930, é um país no qual o grupo racial "branco", assim
como o grupo "negro", já se encontra razoavelmente coalescido, sendo
designadas oficialmente pelos censos demográficos do país, desde 1872, pelas cores
"branca", "preta" e "parda". A designação
"negra" passou a ser utilizada politicamente para agrupar os pretos e
pardos, quando não é usada de forma insultuosa e derrogatória. Nesse sistema de
classificações, no entanto, é verdade que a designação "morena",
preferida por 1/3 da população, é usada geralmente para designar a cor
nacional, ou seja, da "raça brasileira"20.
No entanto, como comentei acima, a propósito da resposta às questões de cor, a
população brasileira convive bem com as duas linguagens: a cromo-racial e a
nacional-racial, o que não constitui um obstáculo incontornável para a
implantação de políticas de ação afirmativa.
Outro argumento, também de ordem prática,
geralmente utilizado para esconder vested interests, é de que, sendo a
nossa identidade de cor fluida, não seria suficiente para controlar o
"problema da carona", ou seja, impedir que pessoas que se identificam
normalmente como brancas ou amarelas passassem a se identificar como
"pardas", "pretas" ou "indígenas", com o
propósito exclusivo de se beneficiar dessas políticas. Ora, esse é um risco
inerente a qualquer política pública, sejam os beneficiários pessoas de cor ou
pessoas de determinado nível de renda. O argumento mais refinado é de que as
políticas de ação afirmativa realmente induzem a um aumento razoável do número
de "negros" e de "indígenas", ou seja, que criam incentivos
para que se assumam identidades até o momento marcadas por estigmas, sem nenhum
reconhecimento social. Assim, a simples mobilização negra nas décadas de 1980 e
1990 pode ter incentivado um maior número de pessoas a se definirem como
"pretas", no censo de 2000, contrariando a tendência histórica de
declínio21.
Do mesmo modo, têm-se assistido a um aumento do número de pessoas que se
definem como "indígenas", sem qualquer referência a grupos indígenas
de pertencimento22.
Finalmente, uma terceira maneira de desqualificar
as políticas públicas que beneficiam membros de grupos privilegiados
negativamente tem sido alegar o prejuízo que tais medidas podem causar a
membros de outros grupos. Afinal, nossos direitos são definidos e garantidos a
indivíduos e não a grupos. É perfeitamente possível que o estabelecimento de
uma cota que beneficie os "negros", por exemplo, acabe por limitar o
acesso de "amarelos" à universidade.
Como evitar esses efeitos perversos? Em primeiro
lugar, é preciso que fique bem claro o objetivo das universidades públicas:
elas se destinam apenas aos mais competitivos e mais capazes? Elas se destinam
apenas aos estudantes mais carentes? Qual é o perfil que se deseja para o
alunado dessas escolas? Como evitar uma associação perversa entre
competitividade e nível de renda? Entre competitividade e identidade racial?
São essas, eu creio, as questões éticas que estão em jogo. As respostas a essas
questões devem ser buscadas nas próprias comunidades universitárias e na
sociedade como um todo.
Há muita coisa em jogo, inclusive a sobrevivência
das universidades orientadas para a pesquisa e não apenas para o ensino.
Enquanto não ficar claro o compromisso do governo com a expansão da pesquisa
científica nessas universidades, qualquer movimento no sentido da
flexibilização do acesso pode ser mal interpretado.
No entanto, a questão básica continua: a excelência
acadêmica pode ficar reservada aos "brancos"? A comunidade científica
pode continuar a dar de ombros e dizer que esse não é o seu problema?
Em termos práticos, indico apenas algumas saídas: é
preciso, em primeiro lugar, criar mais vagas, para evitar assim o "jogo de
soma zero". Em segundo lugar, talvez seja também necessário ir além: por
uma questão de justiça social, aliar ao critério da cor o critério da carência
socioeconômica; unir políticas de flexibilização ao acesso às universidades
públicas com políticas de concessão de bolsas de estudo para alunos de
universidades particulares etc.
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2001.
1
Ver, a respeito, as análises clássicas de Bastide e Fernandes (1955) e
Fernandes (1965).
2
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo n. 5, parágrafo XLII, reza:
"a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível,
sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei". Esse parágrafo é
regulamentado pela Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989, modificada depois
pela Lei n. 9.459, de 13 de maio de 1997 (ver Silva Jr., 1998).
3
Num país como o Brasil, onde 14% da população em 1997 vivia abaixo da linha de
indigência (R$ 76,36 mensais) e 34% abaixo da linha de pobreza (R$ 152,73
mensais), a categoria "classe média" pode ser enganosa. Seria melhor
dizer que estamos falando de camadas afluentes dos trabalhadores, de alguns
autônomos e profissionais de pouca renda e pequenos proprietários urbanos,
entre outros (Barros, Henriques, Mendonça, 2001).
4
As forças socialistas a que me refiro eram aquelas ancoradas principalmente por
três movimentos sociais: as Ligas Camponesas, no campo, que demandavam por
reforma agrária; o movimento estudantil, que lutava pela ampliação das vagas
das universidades públicas; e o movimento operário, nas cidades, cujas demandas
eram basicamente salariais. Essas eram as principais forças sociais a trazerem
para o sistema político demandas potencialmente desestabilizadoras, posto que
este se organizava de modo conservador, preservando e casando os interesses das
antigas oligarquias agrárias aos interesses da indústria emergente.
5
A tendência de crescimento do ensino privado em detrimento do ensino público é
analisada em Cunha (1986). Por outro lado, Barros, Henriques e Mendonça (2001),
analisando dados internacionais, chegam à conclusão de que "o sistema
educacional brasileiro entre meados dos anos 60 e 80 se expandiu a uma taxa bem
mais lenta que a média internacional correspondente".
6
Maria Helena Guimarães de Castro (2000), usando dados do Inep/MEC, estima em
14,8% o percentual de jovens entre 20 e 24 matriculados em escolas superiores,
em 1998.
7
Uso o termo "qualidade" para designar algo que não é objetivo e
unívoco, mas uma construção histórica sobre o que é o bom ensino. Em grande
parte, a percepção da "qualidade" está associada ao sucesso dos
alunos no vestibular, no caso do ensino de nível médio, e no mercado de
trabalho, no caso do ensino superior.
8
Em julho de 1996, o Ministério da Justiça organizou em Brasília um seminário
internacional sobre "Multiculturalismo e racismo: o papel da ação
afirmativa nos Estados democráticos contemporâneos", para o qual foram
convidados vários pesquisadores, brasileiros e americanos, assim como um grande
número de lideranças negras do país. O presidente em pessoa fez questão de
abrir os trabalhos do seminário, acompanhado pelo vice-presidente e pelo
ministro da Justiça.
9
Zumbi, chefe do Quilombo dos Palmares, que resistiu bravamente aos portugueses
e aos holandeses, transformou-se em símbolo da resistência negra, sendo
reconhecido como herói nacional brasileiro, em 1995.
10
A campanha pela punição do racismo culminou com o endurecimento, em 1993, da
lei que pune as ofensas raciais com cinco anos de reclusão. A estratégia de
"criminalização" do racismo passou a receber mais restrições que
incentivos por parte da opinião pública, quando o crime se mostrou muito mais
comum que o esperado pelo legislador.
11
Utilizando-se os dados da PNAD de 1999, vê-se que, a taxa de analfabetismo caiu
de 14%, em 1995, para 5,5%, em 1999; que o número de crianças fora da escola
oscilou de 17,8% para 4,3%, entre 1989 e 1999; que o número de domicílios
atendidos por rede de água aumentou de 76,3% para 79,8%, entre 1995 e 1999.
12
A pergunta sobre identidade de cor ("qual é a sua cor?") no
formulário de inscrição ao vestibular foi formulada pela primeira vez na
Universidade Federal da Bahia, em 1999, e hoje já consta dos formulários de
muitas universidades. A única estatística oficial sobre a identidade de cor dos
estudantes universitários é aquela que consta das estatísticas do Exame
Nacional de Cursos, chamado "provão", que, entretanto, não compreende
todos os cursos universitários.
13
Excetuando-se a Escola Paulista de Medicina – Unifesp –, que tinha 1.281 alunos
em 2001.
15
Como resposta a essa reivindicação, a Fuvest, em São Paulo, passou a isentar
anualmente 16 mil estudantes de pagamento de taxa de inscrição para vestibular.
Tal isenção se dá também em várias outras universidades brasileiras como
resposta às reivindicações do movimento negro.
16
Usamos o termo "comunidade negra" para designar o grupo de ativistas,
simpatizantes políticos e religiosos que se definem politicamente como
"negros". Tal definição é registrada por Sansone (2000).
17
Felizmente, nos últimos anos, temos assistido à mobilização, nas principais
universidades públicas brasileiras, para produzirem estatísticas, censos,
pesquisas por amostragem e utilizando-se de modificações nos registros
administrativos, que possam servir para diagnosticar e planejar políticas
públicas de justiça racial. A Universidade Federal de Minas Gerais, por
exemplo, introduziu em seus registros administrativos, a partir da matrícula de
2002, uma pergunta sobre a cor de seus alunos. Com isso, esta universidade
poderá, no futuro, estabelecer metas temporais bem delimitadas de absorção de
"negros" e, eventualmente, desdobrá-las em políticas e mecanismos
concretos de flexibilização dos instrumentos de seleção, como a ponderação dos
resultados dos exames de conhecimento, levando em conta a extração social e
racial dos candidatos.
18
Sobre a percepção dos viajantes sobre a mistura de raças no Brasil, ver
Schwarcz (1993).
19
Em pesquisa realizada em 1995 por um instituto de pesquisa, 89% dos brasileiros
afirmaram existir preconceito de cor no Brasil (ver Folha de S. Paulo,
1995).
20
Alguns antropólogos (Harris et al., 1993) criticam o IBGE por não incluir a
designação "morena" no censo, argumentando que tal procedimento induz
à racialização das formas de identidade social.
21
Entre 1980 e 2000, a população que se define como "preta" e
"parda", no Brasil, segundo o IBGE, teve um pequeno aumento
(respectivamente de 0,23% e 0,08%) enquanto a população branca caiu de 0,81%.
Foi a primeira vez que isso aconteceu no século XX.
22
Os dados apresentados na Tabela 1 deste texto mostram um número de
indígenas muito maior do que o que seria esperado nas universidade brasileiras,
não se tratando, certamente, de pessoas pertencentes a comunidades indígenas,
mas de pessoas que escolheram livremente definir-se como tal.